sexta-feira, 27 de abril de 2012

Primeiro indígena a se tornar antropólogo pela Ufam incentiva a procura pela formação



Antes de completar um ano de idade, um menino indígena da etnia tukano foi benzido pelo kumu (benzedor) e recebeu o nome Yupuri. Isto aconteceu em 1980, na comunidade São Domingos Sávio, à margem do rio Tiquié, na região do Alto Rio Negro, no Amazonas, fronteira com a Colômbia. Ao mesmo tempo, o garoto também recebeu um nome de batismo “de branco”, João Rivelino Rezende Barreto.
Sua família havia passado alguns anos na Colômbia, trabalhando com outros parentes indígenas da mesma etnia e não-indígenas, mas retornou ao Brasil quando João Rivelino tinha alguns meses de vida.
Adolescente, ele saiu de sua comunidade junto com os pais e irmãos para viver, primeiramente, em uma outra aldeia, em São Gabriel da Cachoeira (sede do Alto Rio Negro), depois no município vizinho de Santa Isabel do Rio Negro. A intenção era iniciar um tratamento de saúde para sua mãe.
Ainda muito jovem, para ajudar a família, mas sobretudo para se sustentar, trabalhou como pescador, cipozeiro e garçom. Nunca deixou de estudar. Graduou-se em Filosofia, com formação em uma instituição superior das Missões Salesianas, da Igreja Católica.
No último dia 23 de março, Barreto tornou-se o primeiro indígena formado pelo Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), criado em 2007. Em sua dissertação, Barreto optou estudar o seu povo, o seu grupo e sua organização, que em seu trabalho foi nomeada pela categoria “coletivo”.
Carlos Dias, orientador de João Rivelino, descreveu o momento (a defesa da dissertação) como “um rito de passagem” que “iniciou” não apenas Barreto, mas o antropólogo britânico Stephen Hugh-Jones (foi a primeira vez que Hugh-Jones participou de uma banca no Brasil) e dele próprio, já que o indígena foi o seu primeiro orientando.
Nesta semana, João Rivelino Barreto falou sobre sua trajetória pessoal, profissional e cultural em entrevista dada ao jornal A Crítica, cujos trechos são publicados a seguir:

Faça um relato sobre a sua origem, seu nome e sua comunidade.
Pertenço ao grupo de nome Sararó Yuúpuri Búbera Pôra. Também somos conhecidos como família Barreto. Meu nome ocidental é mais utilizado, mas não reduz meu nome tradicional. O meu nome de benzimento nunca vai deixar de existir. Esses nomes são importantes porque trazem benefício para as pessoas. Meu filho também foi benzido. As pessoas que são filhas de branco e índio também querem receber esse nome porque ele traz benefício para a alma e para o coração.
Onde você nasceu?
No tempo da borracha, nos anos 60, meus pais foram para a Colômbia. Eles trabalharam para os brancos como seringueiros, embora também vivessem com parentes tukano que são da Colômbia. Mas no mesmo ano em que nasci, voltamos para o Brasil. A gente se identifica como tukano brasileiro, embora isto não impeça que visitemos nossos parente da Colômbia. Eles também nos visitam.
Em que contexto se deu o deslocamento da sua família para outras áreas?
Morei em São Domingos Sávio até os sete anos de idade. Devido à enfermidade da nossa mãe tivemos que ir para São Gabriel da Cachoeira. Moramos na antiga Casa do Índio, depois fomos para uma outra comunidade, onde nossa irmã se mudou quando casou com um índio tariano. Mas nunca perdemos contato com São Domingos. Nessa ida e vinda nossa mãe faleceu. Passamos a ser andarilhos. Trabalhamos no garimpo, na fronteira do Brasil com a Colômbia, descoberto por meus primos. Depois, fomos morar em Santa Isabel do Rio Negro.
Foi ali que você teve a percepção do que queria?
Eu sempre quis estudar. Foi isso que mais marcou a minha vida. Eu tinha 14 anos quando cheguei em Santa Isabel. Mas foi difícil. Ao mesmo tempo eu levava vida de garimpeiro, de pescador. Fiz muitas coisas. Mas foi ali que começou a transformação. A gente morava numa ilha em frente à cidade. Íamos de canoa para a escola, debaixo de sol e chuva. Meu pai foi trabalhar na vacaria dos padres salesianos e depois fui eu que passei a trabalhar lá.
Como você fazia para trabalhar e estudar ao mesmo tempo?
Foi uma época de muita dificuldade, de não ter o que comer. Eu sempre ia para a escola contando com a sopa que a irmã (freira) ia servir. E também a merenda dos padres. Depois, conhecemos uma família que nos ajudou, a da dona Sandra Gomes Castro. Meu pai retornava muito para a comunidade e ela recolheu eu e meu irmão. Foi nessa época que eu comecei a trabalhar como garçom em uma banca na praça. Nos primeiros meses morei naquela barraquinha. Eu trabalhava a troco de cama, roupa e comida e para poder estudar.
Como foi sua aproximação com os padres salesianos?
Eu tocava violão na igreja. Não é que gostasse muito de rezar, mas eu gostava de violão. Comecei a participar do encontro vocacional com os salesianos. Não tínhamos muitas opções de vida até o temoo em que eu estava lá. Hoje tem a UEA, tem a Ufam. Quando eu terminei o terceiro ano ou ia ser gari, ou entraria no Exército ou entrava no seminário. Escolhi o terceiro. Passei seis anos com os salesianos. Vivi esse período de formação toda. Graças a eles consegui fazer uma faculdade, ter formação humana e intelectual.
Como era a relação entre a formação que você recebia na época com a sua história de vida?
Toda essa formação me deixava inquieto em relação à minha cultura. Eu nunca morei longo tempo na minha comunidade. Sempre estava andando de um lugar para outro. Viajei bastante, conheci o Brasil. Mas minha família estava em situação difícil. Com o tempo pensei em deixar a vida religiosa.
Onde você estudou?
Em 2003 vim para Manaus, onde iniciei como aspirante. Morei no Colégio Salesiano Dom Bosco, na Zona Leste. Depois fiz o primeiro ano da faculdade aqui em Manaus, em 2004. Em 2005 fiz noviciado em Mato Grosso do Sul. Em 2006, me encaminharam para Recife para o segundo ano. Nos anos seguintes terminei em Manaus.
O que você pesquisou em seu projeto de conclusão de curso?
Fiz uma monografia na graduação pensando no meu grupo indígena. Mas não tive espaço para discutir sobre os conhecimentos tukano. Meu orientador disse que eu falaria sobre o homem na Grécia Antiga, na Idade Moderna, o homem segundo Platão e segundo Kant. E o homem segundo o tukano teve um espaço muito reduzido. Mas isso não me desmotivou.
Como foi seu ingresso no Mestrado em Antropologia da Ufam?
Entrei no processo seletivo quando não havia cota. Estudei bastante. Tinha receio de não passar.
Você já sofreu preconceito no meio acadêmico?
Quando você fala em preconceito, sinto isso dentro de mim. Eu tenho uma boa formação, mas não tive ainda sorte em termos de emprego. Muitas vezes as pessoas impõem uma certa barreira em termos profissionais. Eu já coloquei muitos currículos em escolas particulares, mas ainda não tive sucesso. Por enquanto, eu presto serviço no curso do Pró-Índio, da UEA. Mas gostaria de trabalhar como professor e pesquisador.
Você pretende voltar para a sua comunidade? Voltar a ter uma relação com ela?
O retorno é muito significativo para nós enquanto homens indígenas, enquanto tukano, enquanto pertencente a uma etnia, a uma cultura diferenciada. Estou com projeto de retorno sim, sempre falo com meu pai. Eu e meu irmão queremos reestruturar a caça e o roçado. O retorno está sempre voltado para os valores culturais, os nossos conhecimentos, nossos benzimentos, da forma de a gente se organizar.
Como foi realizar pesquisa em sua própria comunidade?
Retornei para São Domingos quando fui fazer pesquisa de campo em junho de 2010. Pesquisar seu próprio grupo foi fácil e ao mesmo tempo difícil. Fácil porque você fala com sua língua, entende, mas a transcrição é mais difícil. É desafiante.
Como pesquisador, como foi trabalhar sem o distanciamento ou estranhamento, já que se tratava de sua própria comunidade?
A minha pesquisa tinha a proposta de trazer para o conhecimento acadêmico as noções que os tukano têm sobre eles mesmos. Claro que os antropólogos usam seus termos científicos para descrever as unidades sociais. Mas quando cheguei como pesquisador, eles (os parentes indígenas) já me colocaram como diferencial. Eles falavam “olha, nosso sobrinho está chegando aí, ele é estudante de antropologia”. Já nos colocam em nível superior. Mas eu não queria essa forma de tratamento.
Como você se sente estudando seu próprio povo?
O Alto Rio Negro é um palco muito bem estudado. Mas a gente vê que muitos textos são de gringos. É uma antropologia feita da forma deles. No meu caso, é mais concreta, prática, do que são as unidades sociais. Eles (os outros antropólogos) descrevem com teorias científicas, usam termos como “tribo”, “grupos exogâmicos”. Mas eu usei termo “coletivo” no lugar de clã, sib, tribo. Quando se trata de grupo se limita a um determinado local. Pode ser grupo na Colômbia, em São Domingos, em Manaus.. Mas todos eles se identificam como pertencente ao Sararó Yuúpuri Búbera Pôra. A idéia de coletivo é extensa, ultrapassa as fronteiras.
O que você acha de muitos indígenas estarem fazendo faculdade, como é o caso dos alunos do mestrado em Antropologia da Ufam?
O fato de os indígenas cursarem faculdade é uma grande conquista. Mas eu ficava em dúvida se ao entrar na faculdade iria me formar com as teorias dos brancos. É importante ver os valores das nossas culturas. Me formei em um contexto acadêmico pensando nos próprios conhecimentos do meu povo.
Sobre o que trata sua dissertação?
O tema é “Formação e Transformação dos Coletivos Indígenas no Noroeste Amazônico – do Mito à sociologia das Comunidades”. Eu faço uma etnologia em cima do meu próprio grupo. Como eles pensam, o que descrevem, como aconteceu a formação, como chegaram até lá. O primeiro capítulo traz uma descrição mais mitológica. São duas noções que eu considerei como teoria tukano. São noções tukano, o Uükûse e o Muropau Uúsetise (Nota da Reportagem: a grafia é aproximada da pronúncia). A primeira é a arte do diálogo, ela descreve as narrações míticas de formação da terra, da água, dos homens que fizeram a viagem na canoa em transformação, as unidades sociais e as hierarquias. O segundo é um discurso sociológico.
Como foi a relação com seu orientador?
Encontrei com o Carlão (Carlos Dias) no corredor, conversei e ele topou me orientar. Passamos a organizar todo o processo de orientação. O Carlão me ajudou muito, embora todos os professores do mestrado sejam de ponta e se dedicam. Mas ele, enquanto etnólogo, inspirava-se em meu trabalho também e me via como uma pessoa que tinha que entender. Não era apenas meu orientador. O mais desafiante foi ele me fazer pensar enquanto tukano. Ele me deu pistas, fazer leitura antropóloga tukana e fazendo antropologia.
Qual a contribuição de seu trabalho?
Produzi uma genealogia, um mapa. Isso traz um diferencial muito grande. Além de ser um pensamento, está buscando um diálogo com a antropologia. Não podemos isolar nossos conhecimentos, temos que dialogar com a antropologia. A Antropologia da Ufam está possibilitando eu falar de nossos conhecimentos, mas ao mesmo tempo estar ouvindo.
QUEM É
João Rivelino Barreto, de nome indígena Yupuri dado pelo kumu, tem 31 anos. Ele pertence à etnia tukano e é membro do grupo Sararó Yuúpuri Búbera Pôra, que não tem uma tradução literal para o português, da comunidade São Domingos Sávio, localizada à margem do rio Tiquié, na região do Alto Rio Negro. Barreto tem formação em Filosofia em instituições de nível superior da Congregação Católica Salesiana. Concluiu Mestrado em Antropologia pela Ufam, tornando-se o primeiro indígena a se formar neste programa.

FONTE: A crítica .com

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