terça-feira, 17 de abril de 2012

Algumas lendas indígenas



COMO NASCEU A PRIMEIRA MANDIOCA
Lenda indígena

Era uma vez uma índia chamada Atiolô. Quando o chão começou a ficar coberto de frutinhas de murici, ela se casou  com Zatiamarê.
As frutinhas desapareceram, as águas do rio subiram apodrecendo o chão. Depois, o sol queimou a terra, um ventinho molhado começou a chegar do alto da serra.
Quando os muricis começaram outra vez a cair, numa chuvinha amarela, Atiolô começou a rir sozinha. Estava esperando uma menininha.
Zatiamarê, porém, vivia resmungando:
— Quero um menino. Para crescer feito o pai. Flechar capivara feito o pai. Pintar o rosto assim de urucum feito o pai.
O que nasceu mesmo foi uma menina. Zatiamarê ficou tão aborrecido que nem lhe deu um nome. E ficou muitas luas sem olhar a sua cara. A mãe, por sua própria conta,
começou a chamar a menininha de Mani.
O único presente que Zatiamarê deu a Mani foi um teiú de rabo amarelo. Mas não conversava com ela. Se Mani perguntava alguma coisa, ele respondia com um assobio.
— Por que você não fala com sua filha? — Perguntava
Atiolô, muito triste.118
— Porque essa filha eu não pedi — respondia ele. —
Pra mim é como se fosse de vento.
Até que Atiolô ficou esperando criança de novo.
— Se dessa vez não for um homem, feito o pai — jurava Zatiamarê —, vou botar em cima de uma árvore. E nem por assobio vou falar com ela.
Foi, porém, um menininho que chegou: Tarumã. Com ele, o pai conversava, carregava nas costas pra
atravessar o rio, empoleirava no joelho pra contar história. Mani pediu à mãe que a enterrasse viva. Assim, o pai ficaria mais feliz. 
E talvez ela servisse para alguma coisa. Atiolô chorou muitos dias com o desejo da filha. Mas,
tanto Mani, pediu que ela fez.
Fez um buraco no alto do morro e enterrou Mani.
— Se eu precisar de alguma coisa — explicou ela —,
você saberá.
Atiolô voltou para casa. De noite, sonhou que a filha  sentia muito calor. De manhãzinha foi até lá e a desenterrou.
— Onde você quer ficar enterrada? — perguntou.
— Onde tiver mais água — pediu Mani. — Me leva pra beira do rio. Se eu não estiver satisfeita, você saberá.
Na primeira noite, Atiolô não sonhou nadinha. Achou que a filha estava alegrinha no novo lugar. De tardinha, porém, quando tomava banho no rio, não é que recebeu um recado?
Boiando na água, era a voz de Mani:
— Me tira da beira do rio. O frio não me deixa dormir.
Atiolô obedeceu. Levou a filha pra bem longe, na mata.
— Quando você pensar em mim — disse a menina — e não se lembrar mais do meu rosto, está na hora de me visitar. Aí, você vem.
Passou muito tempo. Bastante que bastante. Um dia, Atiolô
sentiu saudade da filha, mas cadê que lembrou da cara que ela tinha?!
Foi na mata.
Em vez de Mani, encontrou uma planta muito alta e muito verde.
— Uma planta tão comprida não pode ser a minha
filha! — resmungou.
Na mesma hora a planta se dividiu. Uma parte foi ficando rasteirinha, rasteirinha e virou raiz. Sua mãe achou que podia levar aquela raiz pra casa. Era a mandioca.
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AS LÁGRIMAS DE POTIRA
Lenda indígena

Muito antes de os brancos atingirem os sertões de Goiás, em busca de pedras preciosas, existiam por aquelas partes do Brasil muitas tribos indígenas, vivendo em paz ou em guerra e segundo suas crenças e hábitos.
Numa dessas tribos, que por muito tempo manteve a harmonia com seus vizinhos, viviam Potira, menina contemplada por Tupã com a formosura das flores, e Itagibá, jovem forte e valente.
Era costume na tribo as mulheres se casarem cedo e os homens assim que se tornassem guerreiros.
Quando Potira chegou à idade do casamento, Itagibá adquiriu sua condição de guerreiro. Não havia como negar que se amavam e que tinham escolhido um ao outro. Embora outros jovens quisessem o amor da indiazinha, nenhum ainda possuía a condição exigida para as bodas, de modo que não houve disputa, e Potira e Itagibá se uniram com muita festa.
Corria o tempo tranqüilamente, sem que nada perturbasse a vida do apaixonado casal. Os curtos períodos  de separação, quando Itagibá saía com os demais para caçar, tornavam os dois ainda mais unidos. Era admirável a alegria do reencontro!
Um dia, no entanto, o território da tribo foi invadido por vizinhos cobiçosos, devido à abundante caça que ali havia, e Itagibá teve que partir com os outros homens para a guerra.
Potira ficou contemplando as canoas que desciam rio abaixo, levando sua gente em armas, sem saber exatamente o que sentia, além da tristeza de se separar de seu amado por um tempo não previsto. Não chorou como as mulheres mais velhas, talvez porque nunca houvesse visto ou vivido o que
sucede numa guerra.
Mas todas as tardes ia sentar-se à beira do rio, numa espera paciente e calma. Alheia aos afazeres de suas irmãs e à algazarra constante das crianças, ficava atenta, querendo ouvir o som de
um remo batendo na água e ver uma canoa despontar na curva do rio, trazendo de volta seu amado. Somente retornava à taba quando o sol se punha e depois de olhar uma última vez, tentando distinguir no entardecer o perfil de Itagibá.
Foram muitas tardes iguais, com a dor da saudade aumentando pouco a pouco. Até que o canto da araponga ressoou na floresta, desta vez não para anunciar a chuva mas para prenunciar que Itagibá não voltaria, pois tinha morrido na batalha.
E pela primeira vez Potira chorou. Sem dizer palavra, como não haveria de fazer nunca mais, ficou à beira do rio para o resto de sua vida, soluçando tristemente. E as lágrimas que desciam pelo seu rosto sem cessar foram-se tornando sólidas e brilhantes no ar, antes de submergir na água e bater no cascalho do fundo.
Dizem que Tupã, condoído com tanto sofrimento, transformou suas lágrimas em diamantes, para perpetuar a lembrança daquele amor.

COMO A NOITE APARECEU
Lenda tupi

No princípio não havia noite — dia somente havia em todo tempo. A noite estava adormecida no fundo das águas.
Não havia animais; todas as coisas falavam.
A filha da Cobra Grande – contam – casara-se com um moço.
Esse moço tinha três fâmulos fiéis. Um dia, ele chamou os três fâmulos e disse-lhes:
— Ide passear, porque minha mulher não quer dormir comigo.
Os fâmulos foram-se, e então ele chamou sua mulher para dormir com ele. A filha da Cobra Grande
respondeu-lhe
— Ainda não é noite.
O moço disse-lhe:
— Não há noite, somente há dia.
A moça falou:
— Meu pai tem noite. Se queres dormir comigo, manda
buscá-la lá, pelo grande rio.
O moço chamou os três fâmulos; a moça mandou-os à  casa de seu pai, para trazerem um caroço de tucumã.
Os fâmulos foram, chegaram à casa da Cobra Grande, esta lhes entregou um caroço de tucumã muito bem fechado e disse-lhes:
— Aqui está; levai-o. Eia! Não o abrais, senão todas as coisas se perderão.
Os fâmulos foram-se, e estavam ouvindo barulho dentro do coco de tucumã, assim: tem, tem, tem… xi… Era o barulho dos grilos e dos sapinhos que cantam de noite.
Quando já estavam longe, um dos fâmulos disse a seus companheiros:
— Vamos ver que barulho será este?
O piloto disse:
— Não, do contrário nos perderemos. Vamos embora, eia, remai!
Eles foram e continuaram a ouvir aquele barulho dentro do coco de tucumã, e não sabiam que barulho era.
Quando já estavam muito longe, ajuntaram-se no meio da canoa, acenderam fogo, derreteram o breu que fechava o coco e abriram-no. De repente, tudo escureceu.
O piloto então disse:
— Nós estamos perdidos; e a moça, em sua casa, já    sabe que abrimos o coco de tucumã!
Eles seguiram viagem.
A moça, em sua casa, disse então a seu marido:
— Eles soltaram a noite; vamos esperar a manhã.
Então, todas as coisas que estavam espalhadas pelo bosque se transformaram em animais e pássaros.
As coisas que estavam espalhadas pelo rio se transformaram em patos e em peixes. Do paneiro gerou-se a onça; o pescador e sua canoa se transformaram em pato; de sua cabeça nasceram a cabeça e o bico do pato; da canoa, o corpo do pato; dos remos, as pernas do pato.
A filha da Cobra Grande, quando viu a estrela-d’alva, disse a seu marido:
— A madrugada vem rompendo. Vou dividir o dia da noite.122
Então, ela enrolou um fio e disse-lhe:
— Tu serás cujubim.
Assim ela fez o cujubim; pintou a cabeça do cujubim  de branco, com tabatinga; pintou-lhe as pernas de vermelho com urucum e, então disse-lhe:
— Cantarás para todo sempre, quando a manhã vier raiando.
Ela enrolou o fio, sacudiu cinza em riba dele, e disse:
— Tu serás inhambu, para cantar nos diversos tempos da noite e de madrugada.
De então pra cá todos os pássaros cantaram em seus tempos, e de madrugada para alegrar o princípio do dia.
Quando os três fâmulos chegaram, o moço disse-lhes:
— Não fostes fiéis – abristes o caroço de tucumã, soltastes a noite e todas as coisas se perderam, e vós também, que vos metamorfoseastes em macacos, andareis para todo sempre pelos galhos dos pau.
(A boca preta e a risca amarela que eles têm no braço, dizem que são ainda o sinal do breu que fechava o caroço de tucumã e que escorreu sobre eles quando o derreteram.)
(General Couto de Magalhães, O selvagem)

HISTÓRIA DO CÉU
Lenda indígena

Já existia o céu. Mas ainda estava se formando. O céu ainda estava se criando. Era baixo de um lado. Não era como hoje. Era igual a uma onda, levantando só de um lado.
O povo antigo não queria o céu. E foram tentar derrubar com o machado.
Eles batiam, abriam um buraco no céu, mas ele fechava. Imediatamente.
Eles batiam de novo, abriam um buraco e o buraco se fechava. Foram batendo, batendo com o machado e os buracos fechando… Iam se revezando. Cada um batia um pouco com o machado.
Iam cortando, e o céu se fechando… Então desistiram de derrubar:123
— Vamos deixar! Não estamos conseguindo cortar o céu!
Foi assim. Assim que o povo antigo tentou derrubar o céu. Assim que se criou o céu.   
(Mito e histórias do povo xavante)

O UAPÉ
Lenda indígena

Pitá e Moroti amavam-se muito; e, se ele era o mais esforçado dos guerreiros da tribo, ela era a mais gentil e formosa das donzelas. Porém Nhandé Iara não queria que eles fossem felizes; por isso, encheu a cabeça da jovem de maus pensamentos e instigou a sua vaidade.
Uma tarde, na hora do pôr do sol, quando vários guerreiros e donzelas passeavam pelas margens do rio Paraná, Moroti disse:
— Querem ver o que este guerreiro é capaz de fazer por mim? Olhem só!
E, dizendo isso, tirou um de seus braceletes e atirou-o na água. Depois, voltando-se para Pitá, que como bom guerreiro guarani era um excelente nadador, pediu-lhe que mergulhasse para buscar o bracelete. E assim foi.
Em vão esperaram que Pitá retornasse à superfície. Moroti e seus acompanhantes, alarmados, puseram-se a gritar… Mas era inútil, o guerreiro não aparecia.
A desolação logo tomou conta de toda a tribo. As mulheres choravam e se lamentavam, enquanto os anciãos faziam preces para que o guerreiro voltasse. Só Moroti, muda de dor e de arrependimento, como que alheia a tudo, não chorava.
O pajé da tribo, Pegcoé, explicou o que ocorria. Disse ele, com a certeza de quem já tivesse visto tudo:
— Agora Pitá é prisioneiro de I Cunhã Pajé. No fundo das águas, Pitá foi preso pela própria feiticeira e conduzido ao seu palácio. Lá Pitá esqueceu-se de toda a sua vida anterior,
esqueceu-se de Moroti e aceitou o amor da feiticeira; por isso não volta. É preciso ir buscá-lo. Encontra-se agora no mais rico dos quartos do palácio de I Cunhã Pajé. E se o palácio é  todo de ouro, o quarto onde Pitá se encontra agora, nos braços da feiticeira, é todo feito de diamantes. E dos lábios da formosa I Cunhã Pajé, que tantos belos guerreiros nos tem roubado, ele sorve esquecimento. É por isso que Pitá não volta. É preciso ir buscá-lo.
— Eu vou! — exclamou Moroti – Eu vou buscar Pitá!
— Você deve ir, sim — disse Pegcoé. — Só você pode
resgatá-lo do amor da feiticeira. Você é a única, se de fato o ama, capaz de vencer, com esse amor humano, o amor maléfico da feiticeira. Vá, Moroti, e traga Pitá de volta!
Moroti amarrou uma pedra aos seus pés e atirou-se ao rio.
Durante toda a noite, a tribo esperou que os jovens aparecessem — as mulheres chorando, os guerreiros cantando e os anciãos esconjurando o mal.
Com os primeiros raios da aurora, viram flutuar sobre as águas as folhas de uma planta desconhecida: era o uapé (vitória-régia). E viram aparecer uma flor muito linda e diferente, tão grande, bela e perfumada como jamais se vira outra na região.
As pétalas do meio eram brancas e as de fora, vermelhas. Brancas como o nome da donzela desaparecida:
Moroti. Vermelhas como o nome do guerreiro: Pitá. A bela flor exalou um suspiro e submergiu nas águas.
Então Pegcoé explicou aos seus desolados companheiros o que ocorria:
— Alegria, meu povo! Pitá foi resgatado por Moroti!
Eles se amam de verdade! A malévola feiticeira, que tantos homens já roubou de nós para satisfazer o seu amor, foi vencida pelo amor humano de Moroti. Nessa flor que acaba de aparecer sobre as águas, eu vi Moroti nas pétalas brancas, que eram abraçadas e beijadas, como num rapto de amor, pelas pétalas vermelhas. Estas representam Pitá.
E são descendentes de Pitá e Moroti estes belos uapés que enfeitam as águas dos grandes rios. No instante do amor, as belas flores brancas e vermelhas do uapé aparecem sobre as águas, beijam-se e voltam a submergir.
Elas surgem para lembrar aos homens que, se para satisfazer um capricho da mulher amada um homem se sacrificou, essa mulher soube recuperá-lo, sacrificando-se também por seu amor. E, se a flor do uapé é tão bela e perfumada, isso se deve ao fato de ter nascido do amor e do arrependimento.

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